Atingidos pelos Reflexos...

terça-feira, 25 de agosto de 2009

O show da fé e suas implicações

Diogo Moyses
De São Paulo

O frio do final de semana que passou me fez ficar boa parte do tempo em casa vendo tevê. Pulando de um canal ao outro, dei de cara com a dupla Estevam e Sônia Hernandes, que retornou ao Brasil após mais de dois anos de prisão nos EUA. Também topei, claro, com quase uma dezena de bispos, padres, pastores ou outros líderes religiosos que, por ignorância, não sei dizer bem o que são.

Lembrei-me, ou fui lembrado, da necessidade de discutir a presença cada vez maior das religiões na televisão brasileira.

O fenômeno não é novo, e nem privilégio nativo. Na maioria dos países isso acontece prioritariamente nos serviços por assinatura, a cabo ou por satélite. Quando ocorre na tevê aberta, como nos países da América Latina, em geral se resume a alguns horários ou poucas emissoras.

No Brasil, contudo, o fenômeno é endêmico. Igrejas, aos montes, são elas mesmas concessionárias de radiodifusão ou alugam períodos inteiros da programação de outras emissoras (o que é ilegal, diga-se, mas sobre isso falaremos em outra oportunidade). Mesmo emissoras públicas, como a TV Brasil e a TV Cultura de São Paulo, ainda possuem em sua grade de programação a transmissão de eventos religiosos.

O leitor sabe exatamente do que estamos falando e por isso não é necessário listar ou apontar casos concretos. Os exemplos são fartos e visíveis.

Cada um tem lá suas crenças. Também tenho as minhas. Mas isso não elimina a necessidade de perguntar, sem sectarismos ou fanatismos, se as religiões devem mesmo ocupar a televisão aberta. Caso a resposta seja positiva, devemos questionar se sua presença deve ser indiscriminada, como ocorre atualmente, ou baseada em certas regras ou determinações legais.
A defesa da programação religiosa possui um argumento não desprezível: o fato da religião ser também uma manifestação cultural e, como tal, merecer ampla divulgação, ou pelo menos não poder sofrer restrição.

Contra a programação de cunho religioso, no entanto, parecem estar os dois argumentos mais relevantes.

O primeiro é o fato da religião ser uma manifestação essencialmente privada, o que faz com que os telespectadores tenham o direito a que este tipo de conteúdo não invada a sua casa. Se entramos em templos ou igrejas por iniciativa própria, não parece correto que estes entrem em nossas casas sem a nossa autorização.

O segundo está ligado ao fato do Estado brasileiro ser laico, ou seja, não religioso. As concessões de televisão são públicas, outorgadas pelo Estado, o que faz com que estas não possam ser utilizadas para esse tipo de proselitismo, inclusive para evitar que se configure o favorecimento a esta ou aquela crença. O argumento é bastante forte, praticamente incontestável do ponto de vista jurídico e regulatório.

Mas o fato é que nada disso é observado no Brasil, como se a presença maciça das religiões fosse algo natural.

Vale lembrar, também, que a presença das igrejas é não só indiscriminada, mas também desigual. Algumas religiões, com ampla maioria para os evangélicos e católicos, ocupam as telas graças ao seu poder político (que faz com que consigam obter do Estado as concessões) ou em função de seu poder econômico (que permite a compra de horário em outros canais). Não à toa, religiões de matrizes africanas estão fora das telas.

Há que se considerar, evidentemente, que a própria programação religiosa é diversificada, com cultos e missas, conselhos por encomenda, sessões de descarrego e, inclusive, programas de debates.

O respeito à diversidade religiosa, contudo, não pode encobrir o fato de algumas igrejas ocuparem a televisão somente para ganhar dinheiro seduzindo telespectadores.
De qualquer forma, o problema é certamente complexo. Mas como enfrentá-lo?
Proibir as religiões na televisão aberta, como fazem alguns países? Ou construir regras capazes de garantir equilíbrio em sua ocupação?

A resposta não é simples e exige reflexão. Alguns caminhos parecem possíveis, como a adoção de critérios de classificação indicativa, onde certos conteúdos (como determinados cultos não muito leves, se é que vocês me entendem) não poderiam ser transmitidos nos horários em que os pais normalmente encontram-se fora de casa.

Outra possibilidade, complementar, seria reservar um canal exclusivo para as religiões, com alguns critérios de representatividade, para que sua ocupação aconteça de forma justa e não em função do poder político ou econômico das igrejas.

Por fim, parece importante restringir de forma radical determinados conteúdos, como os cultos que discriminam outras crenças e os que expõem as pessoas sem seu conhecimento.

Se o debate é complexo, uma coisa é certa: ficar do jeito que está, não dá

Fonte: Terra Magazine

2 comentários:

  1. From: Jose Benedito da Silva Junior

    To: diogomoyses@terra.com.br

    Sent: Tuesday, August 25, 2009 10:49 AM

    Subject: O show da fé e suas implicações...



    Caro Diogo, bom dia !



    Meus parabéns pelo artigo “O show da fé e suas implicações” !



    Ao lê-lo, percebi que compartilhamos de grande parte de pensamentos comuns, e sua conclusão realmente aponta para uma excelente reflexão. “ ...ficar do jeito que está, não dá.”



    Saudações.

    ResponderExcluir
  2. De: Diogo Moyses [mailto:diogomoyses@terra.com.br]
    Enviada em: terça-feira, 25 de agosto de 2009 15:51
    Para: Jose Benedito da Silva Junior
    Assunto: Re: O show da fé e suas implicações...



    Prezados(as) amigos(as)



    Recebi um número enorme de mensagens com comentários sobre o texto publicado hoje no Terra Magazine. Normalmente respondo os comentários individualmente, mas como dessa vez o número excedeu as possibilidades de resposta individual, peço desculpas por enviar a todos uma única mensagem.



    Agradeço a todos os comentários indistintamente, tanto os que elogiam quanto os que criticam as idéias ali expressas. Somente não agradeço aos autores dos comentários desrespeitosos, estes sim pouco simpáticos ao espírito democrático.



    Em relação ao texto, gostaria somente de tecer alguns rápidos comentários.



    1. Em nenhum momento ofendi este ou aquele credo religioso. Eu também tenho as minhas crenças e acredito que a presença da minha religião na TV também deve ser discutida. Teve gente que me chamou de ateu e sei lá mais o quê. Não sou ateu, mas tampouco acho que ser ateu deve ser considerado algo ruim ou errado. Quem pensa isso certamente não partilha o sentimento da liberdade religiosa, que inclui o direito a não possuir religião alguma.



    2. Também não defendi que as religiões não devem estar na televisão: somente coloquei argumentos que devem ser apreciados, discutidos. Muitos parecem não ter feito uma leitura correta do que eu defendi. Mas, claro, não os culpo. Ser mal compreendido faz parte da tarefa de colunista.



    3. Defendi, sim, que é preciso haver regras para a ocupação da televisão pelas religiões. Sem regras, impera a lei do mais forte, onde somente alguns possuem espaço. Pelo que me consta, a maioria (ou todas) das religiões não defende lei do mais forte, mas sim o espírito de fraternidade e solidariedade.



    4. A defesa da não presença das religiões na TV aberta não pode ser confundida com censura. A televisão é um serviço público, portanto passível de regramento pelo Estado, como qualquer outro serviço público. Democracias muito mais consolidadas que a brasileira (Inglaterra, França, Canadá, Austrália, EUA, só para citar algumas) possuem regras para a TV muito mais duras que as do Brasil. Muitos desses países, em função do caráter laico do Estado, não permitem religiões na TV aberta (só na por assinatura). E nem por isso são ditaduras sanguinárias. Pelo contrário. Se não fosse possível restringir conteúdos, não existiriam regras para proteger crianças (tais regras podem ser frágeis e ineficazes, mas existem). Imaginem se a TV passasse filmes de sexo explícito no meio da tarde? O controle remoto resolveria a questão? É evidente que não.



    5. Uma série de pessoas me perguntou se, ao invés de falar sobre a presença das religiões na TV, não seria mais produtivo falar dos programas de baixo nível, que estimulam preconceitos ou que incentivam a sexualidade precoce. Já escrevi sobre esses assuntos muitas vezes, é por certo meu assunto preferido, e continuarei a fazer isso. O foco dessa coluna, contudo, foi o tema das religiões na TV. Ou não podemos discutir isso também?



    6. Por fim, aos que disseram que a prática jornalística deveria contemplar maior equilíbrio nas opiniões, lembro que eu sou colunista, ou seja, emito opiniões, e não faço reportagens. Estas sim devem buscar equilíbrio.



    7. Em tempo: a imagem de Edir Macedo não foi colocada nem sugerida por mim, mas sim pelos colegas do Terra. Não me referi a nenhuma religião em especial.



    Mais uma vez, peço desculpas pelos comentários não serem individualizados.



    Um forte abraço a todos, e boa semana.



    Viva a liberdade religiosa, mas viva também o debate sobre a televisão.



    Diogo Moyses

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