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sexta-feira, 18 de novembro de 2016

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DA LAICIDADE NO SÉCULO XXI


Preâmbulo

Considerando a crescente diversidade religiosa e moral no seio das sociedades atuais e os desafios encontrados pelos Estados modernos para favorecer a convivência harmoniosa; considerando também a necessidade de respeitar a pluralidade das convicções religiosa, atéias, agnósticas, filosóficas e a obrigação de favorecer, por diversos meios, a decisão democrática pacífica; e, finalmente, considerando a crescente sensibilidade dos indivíduos e dos povos com relação às liberdades e aos direitos fundamentais e aos direitos fundamentais, incentivando os Estados a buscarem o equilíbrio entre os princípios essenciais que favorecem o respeito pela diversidade e a integração de todos os cidadãos com a esfera pública, nós, universitários, acadêmicos e cidadãos de diferentes países, propomos a reflexão de cada um e o debate público, sobre a seguinte declaração:

Princípios fundamentais

Artigo 1º: Todos os seres humanos têm direito ao respeito à sua liberdade de consciência e à sua prática individual e coletiva. Este respeito implica a liberdade de se aderir ou não a uma religião ou a convicções filosóficas (incluindo o teísmo e o agnosticismo), o reconhecimento da autonomia da consciência individual, da liberdade pessoal dos seres humanos e da sua livre escolha em matéria de religião e de convicção. Isso também implica o respeito pelo Estado, dentro dos limites de uma ordem pública democrática e do respeito aos direitos fundamentais, à autonomia das religiões e das convicções filosóficas.

Artigo 2º: Para que os Estados tenham condições de garantir um tratamento igualitário aos seres humanos e às diferentes religiões e crenças (dentro dos limites indicados), a ordem política deve ter a liberdade para elaborar normas coletivas sem que alguma religião ou crença domine o poder e as instituições públicas. Conseqüentemente, a autonomia do Estado implica a dissociação entre a lei civil e as normas religiosas ou filosóficas particulares. As religiões e os grupos de convicção devem participar livremente dos debates da sociedade civil. Os Estados não podem, de forma alguma, dominar esta sociedade e impor doutrinas ou comportamentos a priori.

Artigo 3º: A igualdade não é somente formal; deve-se traduzir na prática política por meio de uma constante vigilância para que não haja qualquer discriminação contra seres humanos no exercício dos seus direitos, particularmente dos seus direitos de cidadão, independente deste pertencer ou não a uma religião ou a uma filosofia. Para que a liberdade de pertencer (ou de não pertencer) a uma religião exista, poderão ser necessárias “acomodações razoáveis” entre as tradições nacionais surgidas de grupos majoritários e as de grupos minoritários.

A Laicidade como princípio fundamental do Estado de Direito

Artigo 4º: Definimos a laicidade como a harmonização, em diversas conjunturas sócio-históricas e geopolíticas, dos três princípios já indicados: respeito à liberdade de consciência e a sua prática individual e coletiva; autonomia da política e da sociedade civil com relação às normas religiosas e filosóficas particulares; nenhuma discriminação direta ou indireta contra os seres humanos.

Artigo 5º: Um processo laicizador emerge quando o Estado não está mais legitimado por uma religião ou por uma corrente de pensamento especifica, e quando o conjunto de cidadãos puder deliberar pacificamente, com igualdade de direitos e dignidade, para exercer sua soberania no exercício do poder político. Respeitando os princípios indicados, este processo se dá através de uma relação íntima com a formação de todo o Estado moderno, que pretende garantir os direitos fundamentais de cada cidadão. Então, os elementos da laicidade aparecem necessariamente em toda a sociedade que deseja harmonizar relações sociais marcadas por interesses e concepções morais ou religiosas plurais.

Artigo 6º: A laicidade, assim concebida, constitui um elemento chave da vida democrática.
Impregna, inevitavelmente, o político e o jurídico, acompanhando assim os avanços da democracia, o reconhecimento dos direitos fundamentais e a aceitação social e política do pluralismo.

Artigo 7º: A laicidade não é patrimônio exclusivo de uma cultura, de uma nação ou de um continente. Poderá existir em conjunturas onde este termo não tem sido utilizado tradicionalmente. Os processos de laicização ocorreram ou podem ocorrem em diversas culturas e civilizações sem serem obrigatoriamente denominados como tal.

Debates sobre a laicidade

Artigo 8º: A organização pública do calendário, as cerimônias fúnebres oficiais, a existência de “santuários cívicos” ligados a formas de religião civil e, de maneira geral, o equilíbrio entre o que surgiu da herança histórica e aquilo que se atribui ao pluralismo atual em matéria de religião e de convicção de uma determinada sociedade, não podem ser considerados solucionados de maneira definitiva, e lançar-se no terreno do inimaginável. Ao contrário, isto constitui o centro de um debate laico pacífico e democrático.

Artigo 9º: O respeito concreto à liberdade de consciência e a não-discriminação, assim como a autonomia da política e da sociedade frente a normas particulares, devem ser aplicados aos debates necessários relativos às questões associadas ao corpo e à sexualidade, com a enfermidade e a morte, com a emancipação das mulheres, a educação dos filhos, os matrimônios mistos, a condição dos adeptos de minorias religiosas ou não religiosas, dos “não-crentes” e daqueles que criticam a religião.

Artigo 10º: O equilíbrio entre três princípios constitutivos da laicidade também é um fio condutor para os debates democráticos sobre o livre exercício de culto, sobre a liberdade de expressão, a manifestação de convicções religiosas e filosóficas, o proselitismo e os limites decorrentes do respeito pelo outro, bem como as interferências e as distinções necessárias entre os diversos campos da vida social, as obrigações e os acordos razoáveis na vida escolar ou profissional.

Artigo 11º: Os debates sobre estas diferentes questões colocam em jogo a representação da identidade nacional, as regras de saúde pública, os possíveis conflitos entre a lei civil, as representações morais particulares e a liberdade de decisão individual, como um marco do princípio da compatibilidade das liberdades. Em nenhum país e em nenhuma sociedade existe uma laicidade absoluta; tampouco as diversas soluções disponíveis em matéria de laicidade são equivalentes.

A Laicidade e os desafios do século XXI

Artigo 12º: A representação dos direitos fundamentais evoluiu muito desde as primeiras proclamações de direitos (final do século XVIII). A significação concreta da dignidade dos seres humanos e da igualdade de direitos está em jogo nas soluções propostas. O limite estatal da laicidade enfrenta hoje problemas provenientes de estatutos específicos e de direito comum, de divergências entre a lei civil e determinadas normas religiosas e de crença, de compatibilidade entre os direitos dos pais e aquilo que as convenções internacionais consideram como direitos da criança, bem como direito à “blasfêmia” ou à liberdade de expressão.

Artigo 13º: Nos diversos países democráticos, para numerosos cidadãos, o processo histórico de laicização parece ter chegado a uma especificidade nacional, cujo questionamento suscita receios. E, quanto mais longo e conflituoso tiver sido o processo de laicização, em maiores proporções se manifestará o medo de mudanças. Não obstante, na sociedade ocorrem profundas mutações, e a laicidade não poderia ser rígida e imóvel. Portanto, é necessário evitar tensões e fobias, para poder encontrar novas respostas aos novos desafios.

Artigo 14º: Nos locais onde ocorrem, os processos de laicização corresponderam historicamente a uma época em que as grandes tradições religiosas dominavam os sistemas sociais. O sucesso de tais processos criou certa individualização do religioso e daquilo que se refere às crenças, o que se transforma em uma dimensão da liberdade de decisão pessoal. Contrariamente, o que se teme em determinadas sociedades, a laicidade não significa abolir a religião, mas a liberdade de decisão em matéria de religião. Isso também implica, nos dias de hoje, onde necessário, desligar o religioso daquilo que se encontra assentado na sociedade e de todas as imposições políticas. Sem embargo, quem fala de liberdade de decisão também se refere à livre possibilidade de uma autenticidade religiosa ou de convicção.

Artigo 15º: Portanto, as religiões e convicções filosóficas se constituem socialmente em locais de recursos culturais. A laicidade do século XXI deve permitir articular diversidade cultural e unidade do vínculo político e social, da mesma maneira que as laicidades históricas tiveram que aprender a conciliar as diversidades religiosas e a unidade deste vínculo. É a partir deste contexto global que se faz necessário analisar o surgimento de novas formas de religiosidade, tanto de combinações entre tradições religiosas, de misturas entre o religioso e aquilo que não é religioso, de novas expressões espirituais, mas também de formas diversas de radicalismos religiosos. Igualmente, é no contexto da individualização que se deve compreender porque é difícil reduzir o religioso ao exclusivo exercício do culto, e porque a laicidade como marco geral da convivência harmônica é, mais do que nunca, desejável.

Artigo 16º: A crença de que o progresso científico e técnico pode engendrar progresso moral e social encontra-se atualmente em declínio; isto contribui para tornar o futuro mais incerto, dificultar a sua projeção e tornar os debates políticos e sociais menos legíveis. Depois das ilusões do progresso, corre-se o risco de privilegiar unilateralmente os particularismos culturais. Esta situação nos estimula a ser criativos com relação à laicidade, para inventar novas formas para o vínculo político e social, capazes de assumir esta conjuntura inédita e encontrar novas relações com a história que construímos em conjunto.

Artigo 17º: Os diferentes processos de laicização correspondem aos diferentes desenvolvimentos dos Estados. As laicidades, por outro lado, tomaram diversas formas, dependendo do fato do Estado ser centralista federal. A construção de grandes conjuntos supra-estatais e o relativo, mas real, desprendimento do jurídico com relação ao estatal geram uma nova situação. O Estado, sem embargo, encontra-se mais em uma fase de mutação do que em verdadeiro declínio. Tende a atuar menos na esfera do mercado, e perde, pelo menos de maneira parcial de Estado Benfeitor que ocupou em muitos países em maior ou menor proporção. Por outro lado, intervém em esferas até agora consideradas como privadas, isto é, íntimas, e talvez responda mais do que no passado a demandas sobre segurança, algumas das quais podem ameaçar as liberdades. Portanto, necessitamos inventar novos vínculos entre a laicidade e a justiça social, assim como entre a garantia e a ampliação das liberdades individuais e coletivas.

Artigo 18º: Ao mesmo tempo em que existe uma vigilância para que a laicidade não adote, neste contexto, aspectos da religião civil ou se sacralize de alguma forma, a aprendizagem dos seus princípios inerentes poderá contribuir para uma cultura de paz civil. Isso exige que a laicidade não seja concebida como uma ideologia anticlerical ou como um pensamento intangível. Além disso, em contextos onde a pluralidade de concepções do mundo se apresenta como uma ameaça, esta deverá aparecer como uma verdadeira riqueza. A resposta democrática aos principais desafios do século XXI chegará através de uma concepção laica, dinâmica e inventiva. Isso permitirá que a laicidade se mostre realmente como um princípio fundamental de convivência.

***

*Declaração apresentada por Jean Baubérot (França), Micheline Milot (Canadá) e Roberto Blancarte (México) no Senado Francês, em 9 de dezembro de 2005, por ocasião das comemorações do centenário da separação Estado-Igrejas na França.

 

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