Junior... você ainda é
protestante?
Acho que sim...
“Memórias não
podem ser esquecidas. O passado, uma vez vivido, entra em nosso sangue, molda o
nosso corpo, escolhe nossas palavras... de um jeito ou de outro, aquilo que já
fomos continua vivo em nós, seja sob a forma de demônios que queremos exorcizar
e esquecer, sem sucesso, seja sob a forma de memórias que preservamos com
saudade e nos fazem sorrir com esperança.
Digo isto como
prelúdio a uma confissão: sou protestante. Sou porque fui. Mesmo quando me
rebelo e denuncio. Minha estória não me deixa outra alternativa. Sou o que sou
em meio às marcas de um passado. Mesmo que eu não quisesse, este passado
continuaria a dormir comigo, assombrando-me, às vezes, com pesadelos e fúria,
às vezes, fazendo-me sonhar com coisas ternas e verdadeiras.
Não foi no
cérebro que me tornei protestante. Ao contrário, minha fé é companheira de
imagens, memórias, perfumes, músicas, solidões, retiros, caminhadas por campos
e beira-mar; rostos, sorrisos, funerais, injustiças, esperanças enterradas,
algumas ressuscitadas; certezas de lealdade a toda prova… E aqui eu teria de ir
colocando nomes: presenças ausentes com quem compartilho a minha vida. É isto.
O decisivo não é a ideia. O decisivo é a pessoa que a gente invoca, não importa
que já esteja morta…
Dizendo de
outra forma: não sou protestante em virtude das ideias que tenho. Não somos o
que somos por termos as ideias que temos. Temos as ideias que temos por sermos
o que somos. Primeiro vem a vida, depois vem o pensar…
É necessária
muita coragem para protestar, contrapor a voz
da consciência individual à voz
das autoridades constituídas. Fazendo isto, se declara que, se
existe um referencial sagrado para o comportamento, se existe um lugar de
verdade para o pensamento, tais lugares não se confundem com os lugares do
poder, não importa que o poder tenha sido legitimamente constituído. O segredo
e a verdade não habitam as instituições (já diria Paulo), mas invadem o nosso
mundo através da consciência.
A primeira
coisa que ela (a consciência) faz é colocar um enorme ponto de interrogação
sobre as cabeças das pessoas que se dizem autoridades religiosas, políticas,
militares, não importa. E é necessário dizer que a autoridade é algo estranho
ao espírito do Novo Testamento. Quem quiser ser o maior, que seja o servo. Substituir
a espada pelo lava-pés. Deus, poder e verdade, abre mão de tudo, esvazia-se…
Leia-se o Novo Testamento e veja-se o papel que as autoridades desempenham ali,
a partir de Herodes, mandando matar as crianças, até as autoridades romanas e
autoridades judias, mandando matar Jesus. Parece que as pessoas em posição de
autoridade são mais suscetíveis à idolatria e à crueldade. É isto que nos conta
a história. É claro que a ordem é necessária para tornar possível a nossa convivência.
E destas coisas, surge, aos poucos, o espírito da democracia, expressão do
doloroso reconhecimento da necessidade da autoridade e da determinação de
manter sempre a autoridade no seu devido lugar: não em cima, mas em baixo, como
serva e funcionária do corpo sacerdotal – claro! – o povo todo, cada um deles um sacerdote.
Depois ela (a
consciência) nos dá permissão para pensar com ousadia os pensamentos mais
loucos e avançados. Reprimir o pensamento é reprimir a consciência, é colocar a
autoridade estabelecida num nível mais alto que a liberdade do indivíduo. Sei
que isto horroriza aqueles que habitam os espaços já organizados e
disciplinados da vida eclesial. Tudo já está previsto. O futuro não pode ser
diferente do passado.
Mas os
comportamentos mudam através dos tempos, e com os estilos de vida surgem novas
formas de pensar e novas formas de falar sobre Deus, sobre Cristo, sobre a
salvação… E quem seria aquele que tomaria da espada para liquidar os
diferentes? Com que direito? Quem quer que se atreva a liquidar os dissidentes
está possuído da ilusão de ser o detentor do monopólio do divino, e sucumbe à
tentação e à crueldade da espada – eclesial ou secular, não importa.
Posso bem
perceber o espanto incrédulo nos olhos do meu leitor, protestante de muitos
anos, que julga ouvir coisas tão insólitas. E ele procurará ao seu redor para
ver onde é que este protestantismo se encontra. Entre os Batistas? Na Igreja
Presbiteriana? Quem sabe nas Comunidades Protestantes? Que dizer dos
Metodistas? E vamos caminhando, inutilmente, reconhecendo as pedras, os espaços,
identificando a voz da autoridade, ouvindo o barulho típico da tesoura de poder
que corta um broto novo… O futuro deve ser uma continuação do passado. As
mesmas ideias. A verdade já foi cristalizada em séculos idos. Proibidos de
explorar o novo, de pensar o insólito… E as pessoas vão ficando tristes,
pensando todos os dias os mesmos pensamentos, fazendo todos os dias as mesmas
coisas, orando as mesmas orações espontâneas formadas com a colagem de
frases feitas e estereotipadas, sem coragem para contar as coisas que acontecem
no fundo da sua alma, porque isto pode perturbar a simetria da rotina…
Então pra quem
me perguntou eu o faço perguntado agora: O que é ser protestante: Uma adesão a
conteúdo e prática normativos? Ou ser protestante é um modo radicalmente novo -
e cada vez mais novo - de lidar com as Escrituras, com a "fé", com a
vida? Ser protestante tem a ver com processo de consciência? Ou tem a ver com
manutenção da tradição? O que é ser, afinal, protestante? Quem sou eu, afinal?
Quem é esse que me olha, agora, desde o coração da angústia?
Tente
explicar...
De recortes do
texto de Rubem Alves - “Confissões de um protestante obstinado”:
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